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Foto do escritorA INICIATIVA

OS FARDADOS E O CUSTO DA PAZ SEM VOZ (?)*

Atualizado: 30 de jun. de 2023

Aos olhos da multidão que se arrebanha extasiada para o belo Festejo Junino, bem como para outros ajuntamentos festivos, determinados seres humanos fardados como os garis, os agentes de trânsito e os policiais, podem parecer invisíveis. E assim é, no geral.

Poucas pessoas sabem os dilemas destes trabalhadores, seus reclames, seus anseios e protestos. A família e os amigos são os únicos que, doravante, se solidarizam com uma realidade paralela latente nas sombras e nos bastidores de uma política que se vale dessa "mais valia" destes trabalhadores que, se ausentes, nenhum alvoroço republicano se constituiria.

O São João do Maranhão, como todos sabem, está sendo propalado como "o maior do Brasil". Um grande investimento de dinheiro público está sendo dispensado para dar ao turista, aos conterrâneos e ao povo maranhense uma imagem do que é nossa sertaneja e singular festa do milho e do místico Bumba-Boi.

Este Boi que, com sua carne e vísceras, tem alimentado a cada dia escassas pessoas, haja vista a carestia, o desemprego, os péssimos salários e demais problemas sociais que privilegiam uma minoria que pode encher de víveres o carrinho no Supermercado. Por outro lado, o Boi também é este simbolismo junino de esperança, pois se espera que ressuscite ao som dos atabaques, das matracas e de todo o encantamento indígena, de caboclos e vaqueiros empenhados no seu retorno à vida.

É sobre este símbolo de esperança, sobre melhores condições de trabalho aos policiais, estes fardados invisíveis e sem voz - pois "algo", à semelhança da tragédia do boi, arrancou-lhes a língua - que desenvolvo estas linhas.

Há uma semana, de forma intempestiva, policiais da capital, como de praxe, deixaram seus postos administrativos de trabalho para se dedicar exatamente a este momento festivo e de grande vulto. Digo "intempestivo", pois sem consulta e maiores informações ficamos à disposição do Batalhão de Turismo para o São João numa escala de serviço de 2×1 potencialmente cansativa e desorganizada. Fomos colocados num grupo apenas para receber as escalas e onde não podíamos dialogar e/ou requerer melhores informações. Aliás, para esta mentalidade policial não temos direitos de reclamar, apenas obedecer. Só existimos para cumprir ordens. De maneira que não se sabe o que passa na alma destes "humanos fardados" que perderam, em algum momento da história nacional, a sua dignidade.

Não demorou muito para que a insatisfação e revolta dos trabalhadores da segurança pública se manifestasse. Aliás, é preciso que se reconheça que o custo do "sucesso" festivo àqueles que podem sair de suas casas e assistir atrações nacionais e artísticas do Estado se deve à Segurança Pública, direito constitucional, inalienável de todo brasileiro e um direito humano basilar. E é dever dos policiais, como servidores do povo (e não do Governo) garantir a preservação da ordem pública e transmitir segurança e proteção aos cidadãos.

O que não entendemos, portanto, é: onde, nesse intervalo, os policiais passaram a ser uma "subcategoria" e perderam sua cidadania? Pois nós também temos o direito ao lazer, a uma folga, a um bom descanso, a sair com os filhos, com nossos cônjuges e com a família para nos divertirmos. Inclusive, nós também elegemos representantes para nos garantirem esses direitos que temos como trabalhadores. Pois, se policial for submeter-se ao autoritarismo e a uma espécie de escravidão consentida, jamais nos prestaríamos a um concurso público pra isso. Sem mais, nesta escala de 2 por 1 onde no primeiro dia se sai às 2:30 da manhã para estar no mesmo dia pela tarde, com sono comprometido e descanso precário, é impossível se sustentar. E o tripúdio contra os policiais não se detém apenas naquela unidade, no Comando de Policiamento Metropolitano se verificam as mesmas práticas. É uma realidade geral em muitos batalhões onde se perseguem policiais, mesmo doentes e com atestado médico. Um caso permanente de violações e abusos dignos de "1984", romance de Orwell, onde o pseudo-argumento de "hierarquia e disciplina" - desvirtuado em sua própria enunciação - se torna um terreno fértil para o sadismo e psicopatia de príncipes sem reinado e onde o remorso por fazer mal não encontra residência, pois se tornou uma prática constante da violência oficial que dá prazer ao delinquente, nutrindo de energia violenta o sistema de segurança e que se abate, já se adivinha, na sociedade.

Se os mais de 30 dias do maior São João do Brasil for às custas do enfado "voluntário" de policiais, pais e mães de família com um salário defasado que mal lhes assegura a manutenção mensal, com perdas inflacionárias nunca solucionadas desde a última gestão e uma carga horária desumana, digna das fábricas européias do período industrial, então é porque estamos retrocedendo 50 anos em 4.

No que temos absoluta certeza que a gestão do Estado e a sociedade maranhense não coadunam com isto e estarão do nosso lado, para garantir a nossa dignidade. Pois não é nossa intenção nos furtarmos do dever com o povo. Jamais iremos instar de nossa missão constitucional. No entanto, como homens e mulheres livres que vivem numa Democracia, não iremos jamais recuar de lutar por nossa DIGNIDADE. E acredito que está palavra traduz o anseio de toda a Polícia do Maranhão num momento de urgentes mudanças sociais que lhes exigem mais, bem como um novo olhar sobre o futuro nascente.

Dizemos assim pois, desde o início da formação, os profissionais de segurança pública, principalmente nós, os militarizados, sabemos e vivemos numa espécie de silêncio punitivo imposto por um currículo obscuro que tramita, muitas vezes, como sinônimo do terror, da interdição e cerceamento do seu direito à expressão. E esta visão não pode mais vigorar.

É este silêncio - por precaução, por receio e conivente - o causador do adoecimento numa massa de trabalhadores essenciais para o serviço público - pois a vida urbana inexiste sem segurança pública - e que os desqualificam, sobremaneira, do grêmio da humanidade e de sua cidadania.

Compreendemos perfeitamente que o Policial (e isto já virou um mantra desta defesa) é o primeiro garantidor dos direitos humanos, é o que chega primeiro em qualquer lugar onde o direito seja violado e as leis sejam desobedecidas. Por outro lado, paradoxo que seja, a este servidor tem sido imposto a mordaça e a sanção via um capricho que lhe prega a aleivosa consciência do 'duplipensar' e o estagna da ação positiva e saudável. Percebam: como pode ser o policial, primeiro garantidor dos direitos, se a ele mesmo é negado e agredido em seus direitos?

Este preâmbulo é para uma reflexão que não se esgota em si e que deve ser discutida por muita gente: desde a própria comunidade dos policiais à toda a sociedade civil que recebe os serviços destes trabalhadores. Aliás, os policiais devem estar saudáveis física e psicologicamente para lidarem com muitas situações extremas. Precisam ser valorizados, ter bons salários, uma vida digna, um bom sono e um bom preparo para responderem com lucidez e praticidade demandas da sociedade, jamais serem lançados à sorte em festividades públicas como se fossem apenas números numa guerra. Aliás, não estamos num estado de guerra. Estamos cumprindo nosso dever constitucional que temos plena consciência e para o qual passamos num concurso público, mas isso não é dado ao preço de perdermos nossa humanidade. Eis então nosso reclame: queremos condições dignas de trabalho e tratamento humanitário num momento em que se requer o dever sem que esqueçam que este dever é exercido por seres humanos - e não escravos - que tratam com seres humanos.

Externa-se assim, uma insatisfação geral e reprimida de muitos camaradas trabalhadores e que sofrem em silêncio.

Esperançamos que a solicitude afamada do poder público alcance este entendimento que também lhe diz muito maior responsabilidade, pois a ponta do iceberg não atinge tão somente esta instância, senão encontra nela o seu maior estopim nas questões sociais.

Por uma política de segurança pública democrática e pelo direito à dignidade!

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Jeanderson Mafra* é Policial militar. Ativista pelos direitos humanos. Conselheiro de Cultura. Escritor e Poeta maranhense.

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