Por Jeanderson Mafra*
"Um estigma é geralmente entendido como “um atributo que é profundamente desacreditável” e que reduz o indivíduo “de uma pessoa inteira e comum a um ser contaminado, incompleto” (GOFFMAN, 1963). Uma identidade estigmatizada é um efeito do poder e pode marginalizar um indivíduo, resultando na desqualificação dessa pessoa para a aceitação plena pela sociedade." [1]
O trecho acima é de um artigo intitulado "Identidade Profissional e Estigma: Um Estudo Com Policiais Militares" e versa sobre uma projeção que lido há alguns anos e que atualmente passou a ficar mais forte e mais evidente na medida em que sou, a despeito de minhas limitações, alguém que participa do debate público e dele não foge como cidadão.
Estou falando sobre este incômodo, sobre esta solidão imposta em que, por vezes, me descubro, devido a minha profissão (que deveria ser apenas um detalhe), e que atrai certos olhares estranhos e desconfiados contra mim, como se eu não pudesse ser um cidadão natural ao meio ao qual pertenço, como se eu mesmo não fosse um cidadão pleno e fosse amputado de meus direitos, inclusive o de ser um humano com emoções, medos, fraquezas e sonhos.
De uns tempos pra cá, devido a esse estigma, me vi em situações de ter que "provar" que sou aquilo que sou: seja um poeta, um jovem com opinião, defensor dos direitos humanos e alguém que participa da literatura e que é entusiasta da boa cultura, na minha forma de olhar e entender, claro, com toda a acanhada educação que recebi e fui formado muito antes de ser apenas, e tão somente, aos olhos de alguns, um "policial militar".
"_ Jeanderson, me confidenciaram que você é um "infiltrado" na esquerda. Que você, na verdade, é um policial direitista, um P2; um bolsonarista que faz críticas ao PT e a Lula".(ipsis literis) Me disseram certo tempo.
Ou (mais efusivamente e direto a mim):
"_Mafra, tu és um P2. Um policial direitista e bolsonarista que apoia Ciro Gomes, um fascista, contra Lula. Ainda bem que fulana me avisou sobre você. Tuas opiniões põem em risco a esquerda maranhense e até nacional".(sic) Vaticinou certo desafeto em outra ocasião.
E aqui e ali, mais vozes, olhares desconfiados; gestos de exclusão, afastamentos e posturas para me limar se fazem nos espaços onde estou, me causando um desgaste emocional e psicológico íntimo sem que nenhuma razão adequada se mostre para confirmar que sou uma "ameaça" ou alguém hostil e que, simplesmente, se finge de "esquerdista" no meio de movimentos e grupos humanistas.
Esse texto nem é uma autopiedade, uma tentativa "maquiavélica e ardilosa" de um dissimulado em buscar uma mudança de olhar sobre si; nem mesmo busco simpatia. Sou o que sou e não preciso me justificar no meio de uma famigerada "ex-querda canceladora" que criou nos últimos anos, nesse país e no mundo, nada mais que uma divisão entre os puros e desconstruídos na escada da redenção ética e superioridade moral e entre os fascistas que não adotando a linguagem liberal, são a escória e merecem a pulverização à moda orweliana, além da punição institucional.
Isso me faz lembrar de uma segunda exclusão que o ser policial militar - ao se portar pela defesa do correto, dos direitos humanos e denunciando o ranço que as instituições herdaram de 64 (não só a polícia) - sofre dentro da própria ordem: além de ser perseguido de forma velada, com escalas diferentes, transferências prejudiciais à sua rotina e de sua família, assédios e abusos que lhe desmontam e desmotivam, o policial militar é visto também como um infiltrado, como um "comunista" nas próprias fileiras castrenses; como um peixe fora d'água, um A01 e indigno de vestir a farda, pois se promove (de modo desvirtuado e criminoso) que ser policial é ter sangue nos olhos e ser um indivíduo inescrupuloso. Tudo isso resquícios da polarização mundial de 60 e da doutrina Truman/MCharty contra o inimigo comunista, este mesmo que quer destruir, até hoje, no Brasil, a família , a moral e os bons costumes, com direito a mamadeira de piroca e kit gay. E lá dentro, sob a vigilância disciplinar, eu sou essa outra espécie de "infiltrado".
Tenho me visto assim - atualmente com mais intensidade - no limbo, não pertencendo nem a um lado e nem ao outro. Aliás, policial não tem lado, senão o do poder, senão o de estar revestido pela coerção, pela violência contra os desfavorecidos, em prol do sistema opressor e contra os direitos. Ora bolas, será que este "infiltrado" acha mesmo que nós somos idiotas? Será que ele pensa que essa "estória cobertura" de poeta, ativista cultural cola? Ele é o que é: um policial militar.
E aí eu tenho noção de minha queda, de minha escolha, quando ousei passar num concurso público com uma "legislação especial" (meus caros, eu só precisava de um emprego e meu filho acabara de nascer), e que hoje não tenho mais o direito de ser eu nem lá (entre os "maus") e nem cá (entre os "bons"). Vejam só que maçada: nem para passar como um fantasma eu servi: tenho opinião e isso me faz estar à vista como uma assombração e estorvo. Sim, eu chamo muita atenção não é mesmo?
E, neste embalo, o espectro de 64 continua a rondar o país com as forças do mal sempre representadas pelos milicos e sem que a ala liberal burguesa compreenda que estes foram os primeiros a serem assassinados, a serem presos, torturados e mortos sem que ninguém lhes fizesse sequer uma prece. Prestes? Era militar. Lamarca? Era militar. Marighela? Era militar. E esses nomes, atentem, só são lembrados porque eram oficiais. Quantos praças não foram torturados, derrubados nos aviões da CIA e torturados nos porões do DOPS/DOI-CODI até perecerem nas covas indigentes pelo simples gesto de pensar diferente?
Desconstruído de minha humanidade e dela não tendo nenhum amparo, nenhuma "salvação" ou oportunidade de que minha pauta seja ouvida na assembleia dos excluídos por aqueles que deveriam defender os "oprimidos". (Você, "policial militar" oprimido?). Pois mesmo o meu grito é uma farsa, faz parte da minha tática no meio destes "cidadãos"; e ser policial militar é agora tudo aquilo que me restou e me foi outorgado pelos opostos: a direita e a esquerda brigam e sou eu que estou no meio deles. Não posso ter lado. Invisível e sem humanidade; revestido por esta capa cinza que se sobrepõe sobre toda a minha história, sobre a minha educação, sobre os livros que li e as coisas boas que acredito e não posso mais expressar com o risco deste dedo acusador me "descobrir" e revelar minha "verdadeira" identidade, que também descubro com supresa e pavor, ignorando até o meu nome de nascença:
_ És um infiltrado!
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*Escritor, Poeta e Policial Militar.
[1] Identidade Profissional e Estigma: Um Estudo com Policiais Militares (disponível em anpad.com.br )
Imagem ilustrativa: Alfred Dreyfus, capitão francês de origem judaica acusado e condenado injustamente de ser espião a serviço da Alemanha.
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