O significado do "Boi" na cultura maranhense é algo que o grande público, geralmente, desconhece na sua profundidade. Ele só conhece o pano, as aparências, o burlesco, o folclore; o exotérico. Poucos imaginam a riqueza de sua parte esotérica.
É óbvio que a coisa cultural já perdeu parte considerável da sua essência, mesmo estética e musical. A sua beleza aparente foi corrompida por longos anos de intervenção politiqueira e mercadológica. A cultura maranhense forjada na sua identidade sertanista onde o boi é o principal alimento - símbolo da riqueza da terra, de sua fertilidade que, na seara, econômica faz do Estado ser um dos mais cobiçados pelo agronegócio - também encontra na história e no conhecimento simbólico o seu alimento espiritual.
Para o poeta Ferreira Gullar, o Boi é ao mesmo tempo o Rei e o Povo, sempre torturado, perseguido, morto e ressuscitado. O Boi é o Rei Dom Sebastião que não morreu nas mãos dos infiéis árabes em Alcácer-Quibir (Marrocos), na batalha cristã contra os invasores muçulmanos. Pelo contrário, Dom Sebastião desapareceu (se encantou), vindo parar no desterro do Brasil, mais precisamente no Maranhão, na Ilha dos Lençóis, localizada no Arquipélago de Maiaú (município de Cururupu, no Litoral Ocidental Maranhense).
Engraçado que eu sempre tenha escutado em criança sobre a lenda do Rei Dom Sebastião com um tom de vivacidade que despertava a minha imaginação. Este privilégio se explica, porque a minha família, do ramo Mafra, veio de Cururupu. De maneira que minha avó, dona Lucenildes Mafra sempre contava muito mais detalhes sobre o Rei em seu Touro Encantado e que um dia, este Rei Menino (pois ainda era pequeno quando se perdeu), iria retornar e reinar. Lembro dela, igualmente, tecendo o couro do boi, com suas miçangas e adereços coloridos, com sua estrela (por vezes de seis ou cinco pontas) brilhante na testa e demais apetrechos. Tudo tinha mais sentido naquele tempo. Tudo tinha mais mística e encanto. Aliás, a casa onde nasci tinha essa aura mágica e espiritual. A minha avó era uma católica fervorosa e uma mineira dedicada. Ela vivia entre o oratório e o terreiro (barracão).
O Tambor de Mina para minha avó não era tão somente uma "manifestação cultural". Era uma escola iniciática. Uma "obrigação" muito séria no mundo dos mistérios e da magia. Entre o Catolicismo e a Mina, percebo, no entanto, que ela nutria esta outra religião secreta, não disposta em templos e invisível, está crença no retorno do Rei Encantado: o Sebastianismo.
De una tempos pra cá, tenho observado cada vez mais, olhando o pouco que ainda resta da cultura em nosso Estado que o Sebastianismo é a verdadeira religião, não digo nem do Maranhão, mas do Norte do Brasil onde o Boi é uma simbologia profunda para além das aparências.
No Maranhão a língua do Boi é desejada por uma mulher e daí se inicia toda uma saga. Se divagarmos um pouco, começamos a inferir que a língua é onde se articula a palavra. Mas como a língua do Boi foi arrancada, o mistério assim não é dito mais em palavras, é sentido e articulado em outra linguagem. Se puxarmos mais ainda nossas heranças culturais ibéricas, temos ainda um outro olhar significativo deste flagelo sofrido pelo Touro: o Touro, neste rol de aflições, é também a perseguição à Toura (Torá) e ao Corão islâmico, livros dos povos que foram desterrados para o Brasil e se miscigenaram aos nativos. A "Toura" era um código usado pelos "marranos" (muçulmanos e judeus) que obrigados a se converterem pela força ao Catolicismo, ainda praticavam a sua fé em segredo. A Torá é o nome do livro sagrado dos judeus que passaram a se referir ao mesmo como "Toura". No que a expressão "A Toura (a Torá) está na al-cocheira", era uma senha para dizer que o livro sagrado estava escondido. Uma linguagem que só a "Confraria da Toura" saberia decifrar.
A tradição oral assim, enriqueceu a semântica de nosso povo, herdando muitos outros elementos da cultura preta e indígena autóctone. É dada aos cazumbás e à pajelança indígena a missão de ressuscitar o boi morto porque teve a sua língua decepada. Uma mística foi proibida de existir, de ser ensinada às outras gerações, cabendo a sua sobrevivência pelo meio simbólico, por seu ensino através de alegorias que não usavam a palavra para se exprimir pois a Toura estava sem língua, não podia falar. Ressuscita, portanto, e revive em meio ao sincretismo religioso que reúne o Catolicismo e seus santos aos orixás e cazumbás.
Interessante que o Boi nasce, é batizado, assassinado e ressuscita como se fosse ao mesmo tempo um animal, um ser humano, e um santo. Como citei no início, para o poeta maranhense, o Rei Dom Sebastião é o Touro Encantado e ao mesmo tempo é o Povo do Maranhão que se encantou e encanta. O Boi tem seu ciclo humano de nascimento, vida e morte. Mas que também têm sua redenção ao ressuscitar e reinar junto com seu Rei que ainda aparece, por vezes nas areias da Ilha dos Lençóis no seu cavalo branco, e por vezes na sua imponente forma de Touro com uma estrela brilhante na testa.
Que viva o Boi e o Povo do Maranhão!
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"Diz a lenda que na praia
dos Lençóis no Maranhão
há um touro negro encantado
e que esse touro é Dom Sebastião.
Dizem que, se a noite é feia,
qualquer um pode escutar
o touro a correr na areia
até se perder no mar
onde vive num palácio
feito de seda e de ouro.
Mas todo encanto se acaba
Se alguém enfrentar o touro.
Isso é o que diz a lenda.
Mas eu digo muito mais:
Se o povo matar o touro,
a encantação se desfaz.
Mas não é o rei, é o povo
que afinal desencanta.
Não é o rei, é o povo
que se liberta e levanta
como seu próprio senhor
Que o povo é o rei encantado
No touro que ele mesmo inventou."
(O Rei que Mora no Mar, Ferreira Gullar)
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